Tatiana Lourenço Emmerich de Souza[1]

INTRODUÇÃO

Neste breve introito, ressalto que o objetivo da pesquisa é explorar a temática dos cibercrimes, apresentando uma análise reflexiva dos desafios enfrentados pelos operadores do Direito, diante das mudanças na legislação penal na era digital e as interações com a dogmática penal tradicional[2].

Frisa-se que este texto é um artigo de opinião que, por meio da metodologia de pesquisa bibliográfica, realizou uma revisão de literatura, que abrange as searas jurídicas e tecnológicas, como principais fontes de críticas e de reflexões.

Portanto, é fundamental compreender que o estudo, aqui desenvolvido, não está oferecendo soluções definitivas ou conclusivas, uma vez que tanto a tecnologia quanto a legislação que a regula estão em constante evolução.

Como spoiler das próximas seções, adianto que a questão dos cibercrimes requer um esforço significativo dos pesquisadores, dada a falta de doutrina e jurisprudência,[3] que dificulta a aplicação prática da teoria, levantando questionamentos sobre a necessidade de adaptação dos conceitos tradicionais do Direito Penal, bem como dos tipos especiais, já estabelecidos na legislação vigente.

Por motivos metodológicos, além de se utilizar a terminologia “cibercrimes”, em conformidade com a Convenção de Budapeste, recentemente ratificada e promulgada pelo Brasil[4] (Brasil, 2023), o trabalho foi dividido em duas partes, para facilitar a compreensão do tema. A primeira que abordará a origem e definição dos cibercrimes, questionando, ainda, se há a formação de um novo ramo do Direito, bem como qual seria o posicionamento do Brasil, em termos legislativos, em relação a prática de cibercrimes, e a segunda que examinará como o Direito Penal tradicional lida com os avanços da sociedade da informação, finalizando com um debate acerca dos desafios práticos enfrentados pelos operadores do Direito no contexto dos cibercrimes.

1 CIBERCRIMES: ORIGENS, TERMINOLOGIAS E CONCCEITO

A primeira questão que muitos me indagam quando debatemos sobre cibercrimes é acerca do cenário de sua origem. Afinal, como, onde e quando ocorreu o primeiro delito cometido com o auxílio ou por meio da rede de computadores?

Antes de responder a essa dúvida, é importante esclarecer que os cibercrimes surgiram como um resultado do desenvolvimento da sociedade da informação e do complexo fenômeno da globalização, que rompeu com velhos hábitos e promoveu uma revolução digital simbiótica, no final da década de 80 (Castells, 1999; Meirelles, 2021; Japiassu, 2024).

No entanto, mister salientar que tudo o que temos hoje em termos de sistemas, protocolos e layout foram concebidos durante a Segunda Guerra Mundial. O ambiente virtual, que hoje denominamos de Internet, deriva do importante projeto americano chamado Advanced Research Projects Agency – ARPA, que originou a Advanced Research Projects Agency Network – ARPANET, também conhecida como o “início de tudo” (Capanema, 2024).

Apesar de a ARPANET, à época, ser direcionada para uso estritamente militar, foi com base nos estudos do pesquisador Lawrence G. Roberts que a Internet se expandiu, a priori, para o universo acadêmico, conectando universidades americanas por meio da comunicação de dados, via e-mails (Sydow 2023; Pinheiro, 2021; Capanema, 2024).

Ressalta-se, ainda, que com o surgimento do Transmission Control Protocol – TCP/IP, o acesso foi ampliado, e milhares de pessoas começaram a se conectar à rede simultaneamente. Todavia, o layout não era atraente e necessitava de melhorias para que sua utilização fosse mais intuitiva e prática. Posteriormente a esse cenário, surge o sistema World Wide Web – WWW, em conjunto com o Hypertext Transfer Protocol – HTTP, que é o modelo utilizado até os dias de hoje (Capanema, 2024; Sydow 2023; Pinheiro, 2021).

É notável que a rede de computadores trouxe, ao mesmo tempo, um ambiente inovador e desconhecido, que, por certo, contou com inúmeros efeitos positivos e negativos ao longo dos anos. O acesso ilimitado, a tudo e por todos, criou novos hábitos (Meirelles, 2021).

O uso de novas tecnologias e aplicativos de compartilhamento de dados, como, por exemplo, as nuvens, facilitou não só a comunicação, mas também acarretou a rapidez com que essas informações são repassadas e armazenadas (Sydow, 2023). Infere-se, ainda, que o novo ritmo dos mercados, marcados pelo crescimento dos ecommerce, bem como o surgimento dos ativos virtuais descentralizados, como o Bitcoin, impuseram novas políticas econômicas, fazendo com que os Estados quebrassem com suas fronteiras físicas (transnacionalidade) (Mello, 2018; Japiassu, 2024).

No mundo jurídico, o uso de robôs e de sistemas de Inteligencia Artificial – IA para aprimorar o trabalho também foi introduzido, mas trouxe, assim como os demais exemplos supracitados, inúmeros desafios e efeitos negativos decorrentes desse novo modo de vida (Zaffaroni, 1984; Meirelles, 2021). O que se percebe é que a criação de novas vulnerabilidades, advindas da sociedade da informação, também podem ser traduzidas pelo que Beck (2011) chamou de sociedade de riscos (Meirelles, 2021).

Para o Professor Carlos Japiassu (2024), em relação às ciências criminais:

O  século  XXI  tem  presenciado  uma  série  de  mudanças importantes  para  o  Direito Penal  e  para  o  Direito  Processual  Penal,  que,  em  alguns  aspectos,  significaram  uma importante mudança dos seus paradigmas tradicionais.[…] Aliás,  a  tecnologia,  que  desempenha  um  papel  cada  vez  mais  central  na  vida  em sociedade, também tem ganho imensa importância no sistema penal, criando novos desafios a serem enfrentados e possibilitando soluções inédita (Japiassu, 2024, p. 21).

  Neste cenário, percebe-se que a inclusão digital foi falha e desorientada (Brito, 2013), o que complicou as interações sociais (Castells, 1999; Sydow, 2023). O sistema jurídico, embora tenha tentado, não conseguiu acompanhar o avanço da era digital e a formação de novos hábitos em sua sociedade. É importante ressaltar que não houve a criação de um novo sistema jurídico, mas sim a necessidade de ajustá-lo às novas demandas tecnológicas, não apenas para promover mudanças legislativas ou estabelecer novas normas para regular as atividades no ciberespaço, mas também para capacitar seus profissionais e colocá-los aptos a lidar com as demandas tecnológicas (Moura, 2021).

Destaca-se que, junto com o “fenômeno da internacionalização do Direito Penal” (Japiassu, 2024), a reprimenda penal ou a tutela penal na sociedade da informação (Brito, 2013) tornaram-se mais intensas devido à atividade criminal organizada, que representa a “expressão do mundo globalizado” (Japiassu, 2024), assim como ao uso de novas tecnologias pela criminalidade (redes de computadores, criptoativos, Inteligência Artificial, robôs, entre outros).

A expansão do Direito Penal (Sanchez, 2021), portanto, surge como uma resposta ao receio da impunidade, uma vez que o ambiente virtual é intangível, pseudoanônimo e ainda desconhecido para muitas pessoas.  A criação de novos tipos penais, bem como com introdução de qualificadoras e agravantes a tipos penais tradicionais, reflete a cibercriminalidade que, de forma inversamente proporcional à falta de legislação e de capacidade técnica dos Estados, pratica cibercrimes – sejaviolando bens jurídicos conhecidos ou novos delitos que atacam a segurança informática, conforme previsto pela Convenção de Budapeste (Sydow, 2023; Brasil, 2024).

Para o Professor Carlos Japiassu (2024), além da criação de tipos penais, é possível observar que:

Outra importante característica do século XXI é a adoção de novas tecnologias como fonte de incriminação, a partir da revolucionaria utilização da internet e dos meios de comunicação o de massa como instrumento para as relações sociais e, portanto, passível de tutela penal.[…] A tecnologia também e responsável pela incorporação da inteligência artificial na fase de investigação, por meio do policiamento preditivo, e em momento posterior, com a justiça preditiva. A utilização de algoritmos para estabelecer padro es de criminalidade, antecipar a delinquência e auxiliar na elucidação de casos cria muitos desafios quanto a proteção de direitos humanos. Os desafios para o estabelecimento do equilíbrio entre segurança e liberdade individual seguem atuais. Ao lado disso, o Direito Penal contemporâneo tem tutelado, igualmente, bens jurídicos não individuais, como meio ambiente e ordem  econômica  e  financeira. A criminalização destes interesses jurídicos  transindividuais  ou  coletivos tem gerado inúmeras discussões quanto a observância do princípio da reserva legal[…](Japiassu, 2024, p. 05).

Diante dessa necessidade, como evolução do próprio Direito surge o Direito Digital (Pinheiro 2021) que, apesar das diferentes terminologias utilizadas pela doutrina (Direito e Tecnologia, Direito Digital, Direito Informático, Direito e Tecnologia da Informação, Direito Eletrônico, Ciberdireito, Direito da Internet, Direito da Tecnologia, E-Direito, Direito Cibernético) (Sydow 2023), tem auxiliado os operadores do Direito a compreender as mudanças provocadas pelas novas tecnologias no universo jurídico e nos institutos tradicionais (Capanema, 2024), além de refletir sobre os novos desafios enfrentados, especialmente no âmbito do Direito Penal do século XXI (Japiassu, 2024).

Cumpre salientar que o estudo dos cibercrimes pertence ao Direito Penal Digital e deve ser entendido como ramo do Direito Penal, conforme assevera o Professor Spencer Toth (2023):

[…]estuda os valores sociais jurídico-penalmente relevantes que estão inseridos em e/ou modificados por um contexto informático, sejam eles valores já existentes submetidos à  uma nova ótica da virtualidade, sejam eles novos valores criados a partir de uma nova sociedade influenciada pela tecnologia, podendo ser também ramo do direito penal inserido a partir de uma nova sociedade influenciada pela tecnologia (Sydow, 2023, p.87).

É importante ressaltar que a doutrina apresenta divergências quanto ao momento e local do primeiro “cibercrime”. De acordo com as referências bibliográficas citadas ao longo deste artigo, ele provavelmente ocorreu em um ambiente acadêmico-militar, nos Estados Unidos da América, nas décadas de 1960 e 1970, envolvendo possivelmente fraude de processamento de dados e/ou manipulação de sistemas (Sydow, 2023; Brito, 2013; Pinheiro, 2021).

Por outro lado, observa-se que a terminologia só começou a ser amplamente utilizada na década de 1990, quando o uso da internet se expandia rapidamente. Posteriormente, o termo também foi adotado pela Convenção de Budapeste (Sydow, 2023; Brasil, 2023).

Na prática, é possível observar que diferentes termos são utilizados para se referir aos crimes cometidos no ambiente digital (crimes digitais, crimes informáticos, crimes cibernéticos, crimes computacionais ou crimes virtuais) (Sydow, 2023). Apesar das nuances semânticas, a maioria da doutrina concorda que esse novo universo é tão complexo que pode gerar interpretações distintas de um mesmo acontecimento. No entanto, com a ratificação e promulgação da Convenção de Cibercrimes pelo Brasil, nos anos de 2022 e 2023, respectivamente, é crucial que o sistema interno se esforce ao máximo para se adequar às novas regulamentações (Murata; Ritzmann, 2023) e utilizar a terminologia adequada em ambientes profissionais e acadêmicos.

Quanto à sua conceituação, entendo que a melhor  definição foi a formulada pelo Professor Spencer Toth (2023) que entende os cibercrimes  toda “conduta típica, ilícita e culpável cometida por meio de recursos informáticos contra bens jurídicos comuns ou informáticos, atingindo ou buscando atingir a esfera da segurança informática em seus elementos confidencialidade, integridade e disponibilidade”.

Destaca-se também que existem diferentes classificações dos cibercrimes, que podem variar de acordo com cada doutrinador. Para fins didáticos, entendo que a classificação mais usual seja aquela que divide as condutas em crimes próprios, impróprios e mistos. Os cibercrimes próprios seriam aqueles violam o “bem jurídico informático[5][6], utilizando-se de meios exclusivamente informáticos para sua ocorrência”, já os impróprios “utilizam-se do meio informático como instrumento para atacar um bem jurídico diverso do informático”. Os mistos seriam aqueles que violam o “bem jurídico informático em si, seus elementos, fazendo uso de ferramentas comuns” (Jesus; Milagre, 2016; Sydow, 2023; Ferreira, 2000).

Portanto, após responder às questões iniciais, proponho as seguintes reflexões: qual seria o equilíbrio entre o Princípio da Reserva Legal (nullum crimen, nullum poena sine lege) e a ausência de regulação quando falamos sobre cibercrimes? Nesse cenário, será que os cibercrimes presentes na legislação brasileira, são realmente eficientes para salvaguardar seus respectivos bens jurídicos e evitar a autotutela digital? Ademais, será que a vulnerabilidade da rede pode ser administrada sem violar o bem jurídico informático de terceiros? Como se dá a proteção de dados no âmbito penal face à ausência de regulação?

1.1 Cibercrimes no cenário brasileiro

No Brasil, o cenário dos cibercrimes ainda se encontra em estágio inicial. As diferentes perspectivas sobre o assunto resultaram em uma grande quantidade de Projetos de Lei – PL[7] aguardando votação no Congresso Nacional. Muitas vezes, esses projetos abordam questões repetitivas, desprovidas de eficácia prática e, não raramente, caracterizados por uma falta de técnica legislativa, acarretam a criação de tipos penais “natimortos”, aumentando lacunas já existentes (Sydow, 2023).

Neste contexto, mister ressaltar o Projeto de Lei nº 2.338/2023, cuja finalidade é regulamentar a Inteligência Artificial no Brasil. Embora o PL seja positivo, visando estabelecer regras para um sistema que muitos desconhecem, garantindo principalmente o direito de entender e compreender as decisões feitas por robôs, várias críticas estão sendo apontadas para os critérios de avaliação dos riscos à sociedade (Lawgorithm, 2024; Brasil, 2023).

Teoricamente, esses critérios não consideraram as particularidades de cada setor, além de não solucionarem possíveis lacunas que poderiam resultar em discriminação de grupos minoritários, uma vez que as análises de dados são realizadas por máquinas, podendo cometer erros graves, especialmente em áreas sensíveis, como o reconhecimento facial. Ainda não se chegou a um consenso e novas audiências e estudos técnicos, conduzidos por comissões no Senado, estão em andamento para discutir o tema (Lawgorithm, 2024).

Em relação às modificações já implementadas no Código Penal (Brasil, 1940), podemos brevemente mencionar três que apresentaram problemas. A primeira delas se refere ao artigo 154-A[8] (Brasil, 2012), que trata da invasão de dispositivos informáticos, mas não esclarece o significado de suas elementares e deixa lacunas sobre o período de permanência do invasor no dispositivo violado (Sydow, 2023).

A segunda é sobre o crime de cyberbullying, previsto no artigo 146-A, que demonstra desproporcionalidade em sua qualificadora “meios virtuais” em relação à “[…] influência sobre a pena, que passa da multa para a reclusão, de dois a quatro anos, sem escalas nas penas restritivas de direitos ou nas formas mais tênues de prisão (prisão simples e detenção)” (Souza e Gilaberte, 2024).

A última é relativa ao artigo 171-A, introduzido pela Lei nº 14.478/2022 (Brasil, 2022), que estabelece o crime de fraude por meio do uso de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros. O tipo, além de apresentar problemas em suas elementares, também pode ser confundindo com outros delitos, a exemplo, da gestão fraudulenta (Sydow, 2023; Aras, 2023). Para o professor Vladimir Aras (2023), a conduta deveria ser a forma qualificada do artigo 6º da Lei nº 7.492/1986, sugerindo, ainda, seu posicionamento em outra parte do Código Penal.

Contudo, é importante ressaltar que o Brasil tem se empenhado em implementar medidas de prevenção e controle das tecnologias emergentes, mesmo que por meio de leis civis e/ou administrativas, como demonstrado no Marco Civil da Internet (Brasil, 2014), Lei Geral de Proteção de Dados (Brasil, 2019) e parte do Marco Regulatório dos Criptoativos (Brasil, 2022). Em relação a esse último, a inclusão de diretrizes para a prestação de serviços de ativos virtuais e a regulamentação das entidades que os fornecem é vista de maneira positiva, bem como as mudanças feitas nas Leis nº 7.492/86 e 9.613/98 para incorporar as prestadoras de serviços de ativos virtuais em suas disposições e agravar a pena, como no caso da Lei de Lavagem de Dinheiro (Brasil, 2022).

Nesse contexto, ocorreu também a promulgação da Convenção de Budapeste, em 2023, conhecida como Convenção dos Cibercrimes. Segundo as professoras Ana Maria Lumi Kamimura Murata e Paula Ritzmann Torres (2023):

[…]A   Convenção   de   Budapeste   foi   incorporada   no   ordenamento   jurídico brasileiro num momento em que diversos temas que tocam a criminalidade  cibernética  estão  em  voga,  como  o  vazamento  de  dados, os golpes informáticos e o uso da internet para a disseminação das fake News. A  temática  merece  amplo  debate,  a  fim  de  que  o  Estado  alcance  certo  nível  de  maturidade  para  a  criação  de  políticas  públicas,  incluindo-se uma política criminal adequada para o enfrentamento da questão, que certamente é muito mais ampla que a abordagem estritamente criminal. No momento da seleção das condutas a serem criminalizadas trazidas na Convenção, porque o texto é datado, a adequação e a atualização das condutas à realidade de hoje é imprescindível. Também se faz necessária uma análise global do ordenamento jurídico pátrio, para que não haja excesso punitivo ou normas penais ineficazes, pois isso traria insegurança jurídica, a permitir arbitrariedades no exercício do poder estatal.[…] (Murata; Torres, 2023, p. 16).

Reflito, ainda, sobre a abordagem desenvolvida pelas professoras Ana Maria Lumi Kamimura Murata e Paula Ritzmann Torres (2023), quanto à importância da cooperação jurídica internacional para lidar com casos de cibercrimes e organizações criminosas. Cumpre salientar que a referida alternativa pode ser fundamental para promover mudanças positivas, seja pela complementação de métodos e informações entre os Estados, seja pelo desenvolvimento de políticas públicas de cibersegurança em países com legislações internas defasadas.

Além disso, a criação de comissões técnicas e a realização de audiências públicas, prévias à aprovação de projetos de leis penais relacionadas à tecnologia, parece-me ser uma boa estratégia para evitar que o ordenamento jurídico produza normas fechadas frente aos avanços tecnológicos, sendo uma alternativa eficaz para garantir que a população possa usufruir das tecnologias de forma segura e responsável.

2 INTERAÇÕES COM DOGMÁTICA PENAL NA ERA DIGITAL: OS DESAFIOS APRESENTADOS PELOS CIBERCRIMES

Na prática, a interação dos crimes cibernéticos com a dogmática clássica – seja com a criação de um novo bem jurídico “segurança da informática” (Sydow, 2023) – e os novos modus operandi relacionados aos tipos penais tradicionais, como a lavagem de dinheiro com criptomoedas e ativos virtuais, naturalmente exigem a definição de fronteiras legais (Mello, 2018). É crucial reconhecer que as leis existentes podem, e devem, ser adaptadas para lidar com as novas tecnologias no âmbito penal, apesar dos desafios (Sydow, 2023).

O manejo de sistemas, linguagens, aplicativos, robôs, inteligência artificial e dados que se movem rapidamente pelo mundo e a aplicação desses exemplos aos princípios e teorias clássicas exigem dos profissionais uma formação multidisciplinar. Os operadores do Direito Penal do século XXI (Japiassu, 2024) precisam – e talvez até mesmo devam – possuir conhecimentos não apenas jurídicos, mas também relativos a outras áreas, como a da tecnologia da informação.

Pode soar estranho considerar a ideia de um Direito Penal voltado para robôs ou tecnologias em vez de seres humanos (Greco, 2021), mas, diante das demandas atuais, com crimes que envolvem robôs dirigindo carros e cometendo delitos de trânsito contra humanos (Greco, 2021), bem como pelas diversas técnicas de engenharia social empregadas por crackers para violar sistemas[9], é essencial que advogados, juízes e promotores estejam preparados para lidar com essas possibilidades, inclusive com a responsabilização penal de pessoas jurídicas, como preveem os artigos 12 e 13 da Convenção de Budapeste (Murata; Torres, 2023).

Como observado, a legislação está em estágio inicial, e o conhecimento das novas tecnologias ainda é limitado. Além disso, as estatísticas relacionadas ao número de casos práticos envolvendo essas questões também é controvertida. Uma razão para isso pode ser o medo das vítimas em denunciar os cibercrimes (cifra negra) e admitir sua falta de conhecimento face às tecnologias que as cercam (autocolocação em perigo), assim como as empresas, que evitam divulgar os ataques cibernéticos sofridos para não revelar às vulnerabilidades existentes em seus sistemas, bem como a exposição de dados de seus clientes (Sydow, 2023).

No entanto, é possível antecipar os debates e começar a refletir sobre como o Direito Penal pode se adaptar a esse contexto. Para o Professor Spencer Toth (2023), a situação requer especificidades desde a parte geral do Código Penal, com a criação de princípios específicos[10] para auxiliar as demandas do Direito Penal Informático, o estudo aprofundado do bem jurídico “segurança da informática” e debates sobre questões como o erro de tipo, tempo, lugar e nexo causal do crime, que se mostram fundamentais, visto que “não há mais a ideia de que vítima e sujeito ativos estejam próximos quando o fato típico ocorre”, já que um cibercrime pode ser cometido em um smartphone do outro lado do mundo (Sydow, 2023).

Outras questões levantadas pelo Professor Spencer Toth (2023) nos fazem refletir sobre a possibilidade de excludentes de ilicitude em casos de cibercrimes. Como seria tratada a legítima defesa em um ambiente virtual? Seria viável aplicar o arrependimento posterior a crimes que ocorrem em segundos com consequências globais? (Sydow, 2023). E, para complementar essas questões, indago: como o Poder Judiciário lidaria com demandas tão distantes da realidade física?

Na parte especial do Direito Penal, também surgem questões relacionadas aos ativos virtuais, se eles poderiam ser objeto de crimes patrimoniais, como o furto de Bitcoins de uma carteira de criptomoedas on-line (Souza, Gilaberte, Montez, 2021).

Além disso, diante da falta de regulamentação tributária, seria possível sonegar criptomoedas diante do sistema blockchain? Ao abordar crimes contra a honra cometidos on-line, como as fakenews, disseminadas por robôs ou inteligência artificial, como interpretar/tutelar essas questões à luz da legislação existente em nosso sistema jurídico? (Meirelles, 2021; Souza, Gibson, Japiassú, 2022).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, concluo deixando todas as perguntas formuladas ao longo do artigo para reflexão. Assim, as considerações finais permanecem em aberto, incentivando os debates sobre o Direito Penal Digital. Os desafios também se apresentam como surpresas, quase impossíveis de serem previstas diante do contínuo progresso tecnológico.

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[1] Doutoranda em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (UFRJ/PPDH). Pós-Graduada em Direito Penal Econômico e Europeu, pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu IDPEE, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, convênio com Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Especialização em Garantías Constitucionales de la Investigación y la Prueba en el Proceso Penal, pela Universidad de Castilla-La Mancha, UCLM, Espanha. Professora da pós-graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública do CEPED/UERJ e da pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da EMERJ. Membro e Ex-Presidente (2023.2) dos Jovens Penalistas da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP-BR). Associada do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

[2] Texto que foi publicado integralmente na obra SOUZA, Tatiana Lourenço Emmerich de. Cibercrimes: uma análise reflexiva dos desafios e interações com a dogmática penal tradicional. In: Mulheres no Direito: perspectivas e contribuições femininas no campo jurídico / Organizadores Marco Aurélio Bezerra de Mello; Ana Cristina Willemann; Kátia Rubinstein Tavares. Rio de Janeiro : EMERJ : IAB, 2024, p. 175-187. Disponível em: https://iabnacional.org.br/images/MULHERES_NO_DIREITO-final.pdf Acesso em: 29/06/2025.

[3] Importante destacar, ainda que já citados nas referências ao longo e no final do trabalho, os autores brasileiros pioneiros que escreveram e/ou investigaram sobre o tema. Entre eles estão os Professores Walter Capanema, Flavia Sanna, Spencer Toth, Patrícia Peck, Grégore Moreira, Auriney Brito e José Antonio Milagre.

[4] Ratificada no ano de 2023 e promulgada, em 2023, por meio do Decreto nº 11.491/2023.

[5] Preâmbulo da Convenção de Budapeste: “Convencidos de que a presente Convenção é necessária para impedir ações conduzidas contra a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade de sistemas informáticos, redes e dados de computador, bem como para impedir o abuso de tais sistemas, redes e dados, ao prever a criminalização de tais condutas, tal como se encontram descritas nesta Convenção, e ao prever a criação de competências suficientes para combater efetivamente tais crimes, facilitando a descoberta, a investigação e o julgamento dessas infrações penais em instâncias domésticas e internacionais, e ao estabelecer mecanismos para uma cooperação internacional rápida e confiável”.

[6] A Convenção de Budapeste criou um sistema tripartido para conceituar o bem jurídico “segurança informática”, que é composto pela integridade, disponibilidade e confidencialidade. Para os professores Spencer Toth (2023) e Senise Ivette Ferreira (2000), há uma necessidade de diferenciação do bem jurídico informático e sua divisão quanto ao tipo de cibercrime.

[7] São alguns exemplos de Projetos de Lei: 570/11, 5870/16, 879/22, 6444/19 e 5261/19.

[8] Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/12).

[9] São técnicas utilizadas para cometimento de cibercrimes, a saber, Trojan, vírus, Spyware, Backdoor, Keylogging, DOS e Ddos.

[10] Os princípios da dupla presunção de inocência, mosaico, relativização dos elementos informáticos, Sigilosidade reflexa e dignidade dos usuários.